Quando tinha uns 14 anos, no meio de uma das minhas crises relacionadas ao fato de que eu existo. Minha mãe, me disse, algo mais ou menos assim, já que da memória se deve duvidar: Olha filha, nessa fase da vida você tem muitos horizontes abertos, muitas portas, muitas pessoas, mas saiba que um dia isso acaba e o que fica são as vivências, então aproveite essas portas e janelas e viva, para de sofrer.
Eu fiquei maluca com aquilo, na época tinha um diário, e escrevi em cada página, num misto de revolta e temor dos abismos da vida: Não fechar os horizontes nunca. 365 vezes eu escrevi.
Hoje, vejo que essa tarefa eu cumpri. Meus horizontes estão abertos e as possibilidades de vida continuam tão inimaginavelmente grandes e belas. Fixei meus olhos no horizonte, longe, fundo, intransponível. O que me esqueci, creio que minha mãe se esqueceu, na época, também. Foram dos pés.
Os pés criam raízes sem nos consultar e se não prestamos atenção neles, é perigoso que estejamos presos em pouco tempo. Não falo do solo exterior a própria consciência, mas de outro solo aquele sobre qual nos construímos internamente. Como um pedaço de solo que carregamos conosco, não sei se viram, no filme Love and Death do Woody Allen, o pai do personagem principal, Boris, carrega um pedaço de terra que ele diz ser a terra dele. É realmente um quadrado de terra com grama sobre ele.
Acho que o solo sobre qual nos fundamos é um pouco mais extenso, penso numa planície, mas pode ser um morro, uma montanha, a beira-mar tanto faz em realidade como nos enxergamos por dentro nesse sentido. Os nossos pés fincam raízes em nós. São extremamente ardilosos, nos iludem com a sensação de mudança, iludem nosso coração de ânsias e desejos com falsos passos. É difícil perceber quando é real, quando é miragem. O fato é que eu, porque aqui falo de mim, fique lá, fixa no horizonte, me esqueci dos pés e hoje me dei conta de quão fincados eles estão em mim. Fincados nos velhos sonhos, fincados na ilusão da constância, fincados na luminosidade do encanto de encontros. Meu corpo, minhas percepções vagueiam pelo mundo, encontro a quem amar e pessoas que me amam, posso estar amanhã no Alaska. Mas há algo que aprisiona, porque, afinal, não fugimos de nós mesmo. Estamos estacados em nossas raízes, em nossas planícies, em nossas histórias e acima de tudo nessa nossa ciência de existir, de saber ser vivente, fixados em nosso tempo, com as percepções tão pequeno burguesas que nos rodeiam, ou melhor que me rodeiam (nem todos estão rodeado dela). De alguma forma não consigo deixar de pensar que essa é uma tristeza que nem todos podem sentir, é uma tristeza de classe. Por outro lado, creio que tristeza seja simplesmente tristeza, é a mesma tristeza, a percepção e reação de nosso pés é que é outra.
Ao fim, vá chega de fim (mesmo que não considere uma má idéia acabar, é inevitável, enquanto ser existente sou extremamente grata, mas não vejo problema no fim), ao começo, como ia dizendo, somos nossos pés. São eles que nos levam para cima e para baixo, são eles que nos colocam no mundo. São eles que criam a concretude, já que é com eles que damos os passos. Esse é o problema de se manter fincado nas terras de dentro, se ficamos sempre no mesmo lugar de nós mesmo, como nos enxegar de outra forma que não essa a que nos habituamos e nos é familiar, como olhar para você de outros ângulos, de outras perspectivas, de outras fontes mesmo que sejam outras ilusões.
O problemas das raízes fixadoras é que elas não crescem dos pés elas vem do chão, e se infiltram na sola dos pés, eles permitem, cansam-se dos passos e caminhos. Assim, sem delongas, para dar o próximo passo é preciso cortar a sola dos pés. E sangrar (dramático não?), sair andando em si mesmo, pode ser um caminho sem volta, todos somos labirintos.
Por um tempo haverá rastros e se você se acovardar pode voltar e ficar no conforto de ser você, daquela maneira mesma para sempre, mas depois de algum tempo de caminhada, não há mais caminho de volta e é preciso seguir. Se acalmem, não proponho que cortemos nossas raízes, elas continuaram em nós sempre, nos acompanhando para qualquer lugar que seja, mas que cortemos a sola dos pés, para podermos caminhar por dentro, da mesma forma que caminhamos por fora. É triste que não possamos encontrarmos em nós mesmo, unicamente justificando que estamos presos a nossas crenças por vezes mortas, novas formas de ser. Talvez os homens que cortaram as solas dos pés sejam aqueles que viveram no Absurdo (de Camus), ou melhor com consciência dele, talvez, não sei. Mas, se não o fizermos, meus queridos, será sempre preciso imaginar Sísifo feliz, será sempre preciso que nos imaginemos felizes em nossa pequenas mediocridades e grandezas forjadas diárias. É um caminho, sem dúvida, só não é o caminho que quero para mim. Até logo menos, meus amados, meus não amados. Vou buscar a tesoura de poda!
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