Pedacinhos de gentes

Tem pedacinho da gente espalhado por ai. Eu poderia enumerá-los. Dizer os nomes. Mas isso não mudaria essa sensação do tempo passando apressado. Levando gente, trazendo gente para perto e depois de tudo, no fim da festa, que gostaríamos que nunca acabasse, levando embora de novo! Porque é no meio dessa festa quando estamos exalando amor, é que percebemos o quanto gostáriamos de que essas pessoas estivessem sempre por perto, mesmo que quebrássemos o pau vez ou outra. E que por alguns dias a gente escolhessemos sair com outros amigos ou ficar sozinha em casa mesmo, "só pra dar um tempo" e o tempo passa. E quando um olho pisca mais lento, poeira na estrada. Não acho ruim, já comi poeira de amigos, já fiz amigos comerem poeira, faz parte da coisa toda. Mas a saudade fica! Sempre fica! Mesmo daqueles que foram amigos e não serão mais ou mesmo daqueles que achamos que eram amigos, mas não eram. Que importa? O tempo vivido com autenticidade fica. Disse Thoureau: "Aquilo que é feito uma vez, está feito para sempre." Ou seja, você aí remoendo o passado: desencana está feito num tempo que nós não temos mais acesso. Acabou! É finito! Tem sempre o segundo de agora, para recomeçar, daí estará feito para todo sempre. Cara pálida, não vai ficar com medo de viver! Não, não! Vai se lambuza, cai de boa bem no meio daquele bolo de chocolate que sua avó preparou para você de aniversário. É um privilégio não ser por assim dizer "Walking Dead". Vai menino, vai menina! Vai brincar de roda enquanto é tempo. A gente cai mesmo. Dá de boca no chão, arranca a tampa do dedão, rala o joelho, é deixado de lado, os dentes de leite caem, outras partes do corpo mais para frente também caem. O vigor diminui, a gente trepa menos, come mais... A gente cria manias e depois fica irritados com elas... Eu sei parece horrível! Para a vida! Para eu vou descer aqui mesmo! Já! Mas, sabe  de uma coisa, a gente encontra amigos, a gente encontra amores, a gente faz festa, fica bêbado, fuma um, a gente viaja e muda tanto por dentro, cria e destrói jardins! E tudo pode crescer e se expandir na mesma medida em que às vezes definha! E pode até ser que nada disso aconteça, que a vida seja diferente! Não importa, melhor que ficar pelos cantos, criando monstrinhos, alimentando mediocridades, consumindo até o cu do coelho de pascoa, pregando Jesus na cruz e fazendo esse monde de besteiras que muitas vezes nos dizem que é o correto. Em linha reta para o nada, para uma festa sem fim, só cheia de ressecas que no final nos absorverá sem que tenhamos tido o tempo ou a audácia de viver! Saí dessa velhinho! Vai para o mundo, que o mundo vem pra você. São tempo difíceis, ardilosos. Esqueça, estamos neles e como disse um sábio, muito amigo, que já passou várias noites comigo e vários dias: "Não nos é dado escolher o tempo em que vivemos, mas podemos escolher o que fazer com o tempo que nos é dado!"(1)

(1): Ganfalf no Senhor dos Anéis I, quando Frodo entra em desespero ao saber que o seu anel é o UM.

Doismarinheiros

É o mar, passando,
Em água salgada.
Assim não tem tristeza,
Só esse eterno devir, cheio de águas escorregadias,
Que descem das janelas do rosto.
Era quando com os olhos
Bastos, capinados, encolhidos em rebeldias
O silêncio ocupava cada terra selvagem ou civilizada do pensamento.

Como seguir os dias?
Se olhando os passos repetidamente cotidianos,
Não há um caminho diferente?

Ir ao mar?
O mar tem sempre um caminho diferente
Para o mesmo lugar.

Tarde com chuva

Repetindo para si mesmo enquanto mexe o doce na panela:

- Nada como um bom samba pra cozinhar abobora com açúcar e canela, junto com todos os sabores internos, melhor ainda se for um dia de garoa.

Os gatos, malandros por natureza, enrolados
Ao pé da cama.
Foi assim que dias depois a memória lembrou-se daquele dia.

- Nada como um bom samba pra cozinhar abobora com açúcar e canela, junto com todos os sabores internos, melhor ainda se for um dia de garoa.

És Passos

Em paisagens tingidas,
Tecidas em olhos negros.
Numa escalada heroica,
Empertigada:
Nuvem Heroína de fins de semana e
Sabedora da estupidez humana.
São os muros cercando um jardim que ausente a brisa,
Esperança, morre.
Lenta: minuciusamente dolorido.

E se riem portas e janelas,
Se riem!
Em irônica e sagaz felicidade.

Quando, não aguentas é preciso,
Em nome da Sobrevivência,
Que os mistérios sejam os
Olhos dos outros.

Lonjuras

Uma criança observando uma pessoa na rua pergunta ao pai:
- Pai o que ela tem?
- Ela sofre.
E sem tirar os olhos dela:
- Sofre de que?
- De muitas coisas minha filha.
E pensando um pouco continuou:
- Primeiro sofria de passos longos e suas pernas ficaram doloridas de tanto passo em busca, então desistiu e seu sofrimento passou a ser distâncias, tantos lugares para ir nenhum para ficar, tantas coisas para resolver e nenhum que lhe fosse própria, tanto trabalho sem que ela entende-se para que ou para quem. Por fim, foi acometida de um mal súbito. Passou a sofrer de lonjuras e tudo secou por dentro, por fora e a aridez  tomou conta, tornou-se assim quieta, sempre alerta, sempre apercebida dos espaços intransponíveis do mundo. Ela minha filha sofre de lonjuras. 
A menina, tão menina, não compreendeu muito bem o que aquilo podia significar e por uns instantes esqueceu-se de ser criança e olhou para aquele ser e sentiu as lonjuras. Antes de que alguém pudesse reagir ela abraçou as lonjuras e aquela pessoa tão infeliz e até hoje esta na lembrança o momento em que as lonjuras estancaram e um raio de sol entrou para dentro de todo torpor e reviveu por um instante a sua humanidade.
Eu te amo tanto e tão sem medida,
Que é traiçoeira a estrada que me
Leva a ti.

Eu te sinto tanto, medindo de longe tua estatura
Que sei que te aprisionaram em meio
Ao caos.

Teus pés, minha loucura,
Sempre soubemos?
De olhos gatos e gestos longos.
Cachaça da boa!
Pajé? É negro ou é mulher?

Em seguida, de um lado para o outro,
Arreio, espora e estrada.

Realezas

Sombra de noite.
Direi: sombra de dia.

Deitado sobre as ínsitas asperezas
De ser gente num tempo como esse.
Caminhas dona aranha?
Com oito patas, sempre oito, sempre passando
De uma teia à outra sem remorso
Pelos aprisionados?

É saudade de casa.
De uma casa metafisica e traiçoeira.
Inexistente.

É um pouco de solidão,
Concreta para o dentro,
Mas sabe-se lá o que é no externo.

É o outro dali que repelimos,
Por ser igual,
E não gostarmos das igualezas,
Realezas e torres da onde apontamos.
Igual criança, desavisada das regras, com dedo indicador.

E rindo: escárnio? Cinismo?
Rindo, pró-seguimos.